terça-feira, 26 de agosto de 2008

VERSÁTIL
Célula-tronco adulta extraída da medula óssea. A imagem foi colorida e ampliada com recursos de computador

Células-tronco, segundo a definição científica, são aquelas que têm o potencial de se transformar em diferentes tecidos do corpo humano. No imaginário popular, elas são muito mais que isso. São sementes mágicas capazes de regenerar corações combalidos, reverter os sinais implacáveis da passagem do tempo, construir órgãos inteiros sob encomenda. Para os primeiros pacientes tratados em experiências realizadas no Brasil, as novas pesquisas são a materialização de uma segunda chance de vida.

Na maioria dos casos, essas pessoas não tinham outro recurso terapêutico. Sofriam de doenças graves, enfrentaram inúmeros tratamentos sem sucesso, tinham perdido a capacidade de planejar o futuro. Até que descobriram cientistas que estão tentando entender como funcionam as células-tronco. Decidiram apostar, embora os estudos envolvam riscos conhecidos e desconhecidos. Muitos pacientes voltaram à vida normal e recuperaram a esperança. Nem todos tiveram a mesma sorte.

Desde que a imprensa começou a dar grande destaque às experiências com células-tronco, o público tem interpretado potencialidades como fatos concretos, inegáveis, ao alcance da mão. É por isso que, a cada reportagem sobre experiências em humanos desenvolvidas no Brasil, o e-mail e o telefone dos pesquisadores ficam congestionados. Os pacientes têm pressa. Oferecem-se como cobaias dizendo que não têm nada a perder. E sempre há o que perder. Na melhor das hipóteses, perde-se tempo. Na pior delas, vida.

É compreensível que pessoas desesperadas vasculhem a internet em busca de experiências e aceitem correr riscos. Mas a pesquisa com células-tronco ainda está em sua infância. Há mais dúvidas que certezas. Por enquanto, os únicos estudos clínicos disponíveis no Brasil e no exterior são realizados com células-tronco adultas, aquelas que são extraídas da medula óssea ou do sangue do próprio paciente. A razão: a experiência com transplantes de medula para tratamento de leucemia, realizados com sucesso desde os anos 60, dá aos médicos alguma segurança para desbravar essa área.

"Na medicina, entender que um tratamento funciona pode vir antes de entender como ele funciona"
LUIZ EUGENIO MELLO, fisiologista

Na maioria dos casos, o sucesso relatado pelos pesquisadores ainda é relativo. Embora as terapias em teste não beneficiem todos os pacientes, a recuperação de alguns indivíduos surpreende. Raramente os cientistas conseguem explicar as razões do sucesso. Nem podem garantir que os resultados positivos sejam duradouros. Os pesquisadores ainda não sabem domar as células para que virem o tecido desejado. O máximo que têm feito é depositá-las na região lesada e torcer para que se transformem nas células necessárias.

Diante de tantas dúvidas, há um embate entre os cientistas de laboratório – mais interessados em pesquisa básica – e os médicos, que vivem diariamente o drama da falta de opção dos pacientes e têm pressa em testar terapias. Pesquisadores como Amy Wagers, da Universidade Harvard, acreditam que os médicos estão se precipitando ao sair aplicando células-tronco em pacientes. Acham que o mecanismo de ação permanecerá desconhecido enquanto os médicos continuarem injetando nos voluntários diferentes populações de células da medula. É como se uma informação fundamental ficasse trancada numa caixa-preta.

Clínicos como o cardiologista Joshua Hare, da Johns Hopkins University, discordam. “Não vamos compreender completamente os mecanismos se não pudermos testar as terapias em pacientes”, diz. No Brasil, muitos médicos seguem o raciocínio de Hare. Por isso, o país é o que tem maior número de pacientes inscritos em testes de terapias com células-tronco. “O mecanismo de ação da aspirina só foi descoberto depois de décadas de utilização do remédio”, diz o fisiologista Luiz Eugenio Mello, pró-reitor de graduação da Universidade Federal de São Paulo. “Às vezes, entender que uma estratégia funciona vem antes de entender como ela funciona.”

Nas próximas páginas, ÉPOCA relata os resultados das mais recentes pesquisas em andamento no Brasil. Para os cientistas, as evidências de sucesso ainda precisam ser confirmadas por estudos mais amplos. Para os pacientes, no entanto, elas são sinais inegáveis de que a vida pode ser reinventada.

MAIS SAUDÁVEL
Nádia na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio. Ela acha que o implante de células-tronco evitou que tivesse um segundo infarto

Esclerose múltipla
Cassio de Oliveira, de 34 anos, é o protótipo do jovem descolado. Brinco na orelha esquerda, jaqueta desbotada, jeans e tênis. Em nada lembra um doente enquanto fuma uma cigarilha e conta sua história. Uma história pesada. Há cinco anos, voltava de uma pelada com os amigos quando sentiu a perna esquerda adormecer. Nas semanas seguintes, começou a perder força, enxergar tudo dobrado, tremer a ponto de não conseguir segurar uma xícara de café. Em seis meses,- veio o diagnóstico: esclerose múltipla.

A doença sem causa estabelecida provoca a degeneração progressiva dos nervos, atacados pelo próprio sistema imune do doente. Em pouco tempo, Cassio não tinha forças para ir até a padaria da esquina. O tratamento não fazia efeito. Ele começou a usar muletas. Estava pesquisando preços de cadeira de rodas quando soube de um estudo com células-tronco realizado pelo médico Nelson Hamerschlak, do Hospital Albert Eisntein, em São Paulo, em parceria com Júlio Voltarelli, da Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto.

O processo não é simples. Cassio teve de fazer quimioterapia para matar as células da medula óssea. Com o sistema imune “desligado”, recebeu um soro para apagar a “memória” celular que marcava o tecido nervoso dele mesmo como um alvo a ser atacado pelo sistema de defesa do organismo. Depois, recebeu na veia injeções de células-tronco retiradas previamente de seu sangue. Eram células-tronco da medula óssea, induzidas a migrar em grande quantidade para o sangue. Durante todo o processo, perdeu 35 quilos. Um ano depois, a evolução de Cassio é surpreendente. A doença regrediu, e ele voltou a ter vida quase normal. Dirige, pega metrô e tem a felicidade de acordar e comprar pão na padaria sem depender de ajuda.

Nem todos tiveram a mesma sorte. Dos 41 submetidos à terapia, três morreram. Os médicos acreditam que a quimioterapia dada no início do estudo, em 1999, era muito forte. Com a mudança das drogas, não houve mais mortes. Na maioria dos voluntários, a doença estacionou. Mas não regrediu, como no caso de Cassio e de outro paciente. O que fez a diferença? Para Cassio, o otimismo pode ter conspirado a seu favor. “Acreditar na recuperação fez diferença. Existe tanta generosidade no mundo e a gente só percebe quando passa por uma situação dessas”, diz. “Todos acreditaram na minha recuperação, e isso ajudou muito.” A ciência não explica tamanha recuperação. “Sabemos que inibimos o sistema imune. Mas não sabemos se reconstituímos nervos”, diz Hamerschlak. “Se a célula-tronco da medula migrou para os nervos, é possível que isso possa explicar a regressão da doença.”

As limitações da técnica:
- Não serve para os casos de doença avançada, quando o paciente já está em cadeira de rodas.
- Ainda não se sabe qual é a dose ideal de quimioterapia.

Ossos
A anemia falciforme, doença provocada por uma deformação das células que transportam o oxigênio pelo sangue (as hemácias), é uma doença devastadora. O paciente costuma sofrer lesões nos nervos, nos olhos, na pele e principalmente nos ossos. Um dos efeitos mais corriqueiros é o apodrecimento (necrose) da cabeça do fêmur, parte que se liga ao quadril. Surgem dores intensas. Os médicos implantam uma prótese metálica, mas o método só dá certo quando não houve a perda completa do osso. Muitos pacientes vão parar na cadeira de rodas aos 20 e poucos anos.

Cerca de 7% dos brasileiros sofrem do problema, mais comum na população negra. Em Salvador, a incidência da doença chega a 15%. Para tentar oferecer alguma esperança aos pacientes, o ortopedista Gildásio Daltro, da Universidade Federal da Bahia, decidiu testar o potencial das células-tronco. Elas são extraídas do osso da bacia e separadas em laboratório do restante das células sanguíneas. Esse concentrado é injetado no local da lesão.

Os primeiros 15 pacientes passaram pela experiência há um ano. A maioria mancava e usava muletas. Gildásio diz ter notado melhora na condição deles. “Houve redução da dor e aumento de mobilidade em 90% deles, mas não sabemos se as células realmente viraram osso”, afirma.

A dona de casa Ana Cristina Souza, de 37 anos, faz parte dessa estatística. Graças à liberdade de movimentos conquistada, Ana já pode chegar de surpresa à escola do filho Thierre, de 6 anos. Ele não sabe direito o que são células-tronco, mas repete para todo mundo: “Minha mãe ficou boa e hoje veio me buscar”. As ladeiras do Pelourinho já não são páreo para Ana. Agora, ela consegue vencê-las. É uma grande virada para quem sofre da doença desde 1 ano de idade e passou a infância sem poder brincar. Ana está tirando o atraso. “Ainda não consigo chutar bola com Thierre. Mas dá para jogar com as mãos”, diz.

As limitações da técnica:
- A lesão tem de estar na fase inicial, sem comprometimento da cartilagem.
- O paciente não pode ter infecções.

AUTONOMIA
Carpeneto no Rio Guaíba, em Porto Alegre. Ele recebeu células-tronco no cérebro depois de um AVC. Recuperado, voltou a dirigir

Pâncreas
O diabetes tipo 1 ocorre quando as células de defesa do organismo reconhecem o pâncreas como inimigo e passam a atacá-lo. O órgão produz insulina, o hormônio que faz com que o corpo use o açúcar que comemos para gerar energia. Ao ser atacado, o pâncreas passa a produzir o hormônio de forma insuficiente. É preciso tomar injeções de insulina diariamente e controlar a quantidade de açúcar ingerido.

A doença costuma aparecer em crianças, adolescentes e adultos jovens. O auxiliar de enfermagem André Luis dos Santos Ricardo descobriu o problema aos 27 anos. O que mais o assustava era a possibilidade de enfrentar complicações decorrentes da doença. “Quem sofre de diabetes costuma ter perda de visão, problemas renais e de cicatrização em algum momento”, diz.

André trabalha no Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto. Soube da pesquisa do imunologista Júlio Voltarelli e decidiu participar, mesmo sabendo que a experiência envolvia sérios riscos. Ele poderia sofrer graves infecções por causa da quimioterapia, necessária para matar as células de defesa do organismo que atacavam o pâncreas. André corria o risco de ficar estéril – também por causa da quimioterapia – e precisou congelar esperma.

Mesmo assim, decidiu apostar. André recebeu o implante de células-tronco por meio de um cateter ligado ao coração. Ele bombeia as novas células para gânglios linfáticos, componentes do sistema imune onde estão as células de defesa do organismo. Há três anos ele está livre das aplicações diárias de insulina. Não sabe se está curado. Nem os médicos sabem se o efeito será duradouro. “O que importa é que o medo de pensar nas conseqüências da doença desapareceu”, diz. André ainda controla a alimentação. Mas se autoriza alguns prazeres: em vez de apenas experimentar a musse de maracujá, seu doce preferido, agora come boas colheradas.

Catorze dos 15 voluntários da pesquisa livraram-se das injeções diárias de insulina. “O efeito das células ainda está sendo estudado”, diz Voltarelli. “Há evidências de que elas tenham se transformado em dois tipos de células de defesa do organismo, os linfócitos T e B, e reconstituído um novo sistema imune. É como se o organismo tivesse voltado ao tempo em que as células de defesa não atacavam o pâncreas.”

Os pesquisadores também observaram um aumento na produção de insulina nos pacientes que receberam as células-tronco. “Não só o sistema imune deixou de atacar o pâncreas, como algumas células do órgão também aumentaram a produção de insulina. Por isso, pode ter havido uma regeneração”, diz Voltarelli.

É cedo para falar em cura. O estudo, publicado em abril na prestigiada revista da Associação Médica Americana (Jama), recebeu críticas de especialistas internacionais. Foi levantada a hipótese de que a melhora observada seria resultado do “efeito lua-de-mel”, período em que pacientes recém-diagnosticados com diabetes tipo 1 conseguem ficar sem tomar insulina.

Para Voltarelli, as críticas em relação à possível precipitação de pesquisadores brasileiros em procedimentos com células-tronco devem-se à “dor-de-cotovelo” de especialistas de outros países. “Cientistas estrangeiros dizem que nosso conselho de ética em pesquisa é mais frouxo. Mas tenho colegas nos Estados Unidos que conseguiram aprovação para estudar a aplicação de células-tronco em pacientes com autismo. No Brasil, não consigo autorização nem para estudos com artrite”, afirma.

As limitações da técnica:
- Serve apenas para estágios iniciais da doença, em geral quando o diagnóstico foi feito há menos de seis semanas.
- Não se sabe se o paciente ficará livre para sempre das injeções de insulina. Dois pacientes voltaram a tomar o hormônio

Coração
O MAIOR ESTUDO com células-tronco adultas já realizado no mundo é brasileiro. O trabalho, financiado pelo Ministério da Saúde, envolve 1.200 pacientes de quatro tipos de problemas cardíacos. O estudo deverá acabar em 2008. “Se for comprovada a eficácia da técnica, ela poderá ser oferecida pelo Sistema Único de Saúde”, diz Antonio Carlos Campos de Carvalho, coordenador do trabalho. Com a adoção do método, o Ministério da Saúde espera economizar R$ 600 milhões por ano com transplantes, internações e cirurgias.

Metade dos pacientes recebeu a injeção de células-tronco retiradas da própria medula óssea. A outra metade recebeu uma solução sem fim terapêutico (placebo). Nem os médicos nem os pacientes sabem quem pertence a cada grupo. O objetivo é comprovar os resultados obtidos em estudos anteriores, como o conduzido pelo pesquisador Ricardo Ribeiro dos Santos, da Fiocruz, em Salvador.

O corpo em constante renovação
Células-tronco adultas existem em nosso corpo inteiro – do cérebro ao dedão do pé. As mais versáteis são as da medula óssea

1. Cérebro
A maioria das células-tronco neuronais é encontrada no cérebro. Elas também existem na medula espinhal

2. Pulmão
Os cientistas acreditam que existam diferentes populações de células-tronco nos pulmões. A identidade de algumas delas é controversa

3. Coração
Raras células-tronco cardíacas foram descobertas perto do átrio, a câmara superior do coração

4. Fígado
Células-tronco hepáticas substituem células velhas e se multiplicam rapidamente quando o órgão é danificado

5. Intestino
Células-tronco produzem milhares de novas células intestinais a cada dia. Elas substituem células danificadas durante o processo de digestão

6. Medula óssea
Aqui ficam as células-tronco mais potentes, capazes de se transformar em vários tecidos. Elas são produzidas dentro dos ossos e viajam pelo organismo através do sistema circulatório. Os cientistas brasileiros estão testando terapias baseadas nessas células em pacientes de: Doença de Chagas,Cirrose hepática, Diabetes, Insuficiência cardíaca, Necrose óssea, Derrame, Esclerose múltipla

7.Músculos
Traumas e lesões provocados pelo excesso de exercício induzem as células-tronco a regenerar os músculos


Nesse estudo, de 2003, 30 pacientes que sofriam de insuficiência cardíaca provocada pela doença de Chagas receberam injeção de células-tronco retiradas da própria medula. As células foram injetadas na artéria femoral por meio de um cateter e seguiram até as artérias coronárias.

Segundo Santos, a qualidade de vida dos pacientes melhorou. A falta de ar diminuiu, e eles puderam retomar suas atividades normais. Novamente, os cientistas estão no escuro. Não têm certeza sobre como as células-tronco agem no coração. As hipóteses levantadas até agora são baseadas em estudos com animais. “O efeito mais importante das células da medula no coração foi secretar enzimas que digerem a cicatriz causada pela doença de Chagas”, diz Santos. Com uma cicatriz menor, o coração é capaz de contrair de maneira mais eficiente e de bombear sangue para o corpo.

As células-tronco também parecem fazer diferença em pessoas que acabaram de sofrer infarto. O cardiologista Hans Fernando Dohmann, diretor-científico do Hospital Pró-Cardíaco, no Rio de Janeiro, coordena uma pesquisa com 300 pacientes. Metade recebe o tratamento convencional, conhecido como angioplastia. A outra metade recebe o mesmo tratamento e também o implante de células-tronco. Os pesquisadores querem confirmar os bons resultados de um estudo anterior, realizado com 50 voluntários. “Depois de seis meses, os pacientes que receberam as células-tronco tiveram a capacidade de contração do coração aumentada em 6% em relação aos pacientes que receberam tratamento convencional”, diz Dohmann.

Parece pouco, mas na prática pode fazer diferença. Pelo menos é o que conta a supervisora comercial Nádia Neves de Lima, de 49 anos. Ela sofreu um infarto em 2005, apesar de ter uma dieta saudável e de fazer exercícios. Para os médicos, o problema pode ter sido causado por estresse (ela trabalhava demais), herança genética (o pai morreu de infarto) e por um péssimo hábito (Nádia fumava dez cigarros por dia havia 20 anos). Levada rapidamente pelo filho ao hospital, recebeu implante de dois stents – uma prótese metálica para manter a artéria desobstruída – no coração. Alguns dias depois, foi convidada a participar do estudo. Células-tronco de sua medula foram aplicadas no coração, por meio de um cateterismo.

Hoje, ela diz que se sente muito bem. Não tem certeza se as células-tronco foram benéficas. Mas acha que sim. “Talvez o implante tenha reduzido as chances de um novo infarto”, diz. Segundo o cardiologista Dohmann, é possível que isso aconteça, mas não há dados científicos que comprovem essa hipótese. Apesar de ter recebido o implante, Nádia não se livrou dos remédios. São cinco ao todo: vasodilatadores, anticoagulantes e medicamentos para combater colesterol. Ela passou a controlar ainda mais sua dieta. Mas a mudança mais radical – e talvez mais benéfica – foi ter abandonado o cigarro.

As limitações da técnica:
- Não se sabe como pacientes em estágios iniciais de doença de Chagas reagiriam ao tratamento.
- No caso de infarto, a técnica não serve para pacientes que precisaram usar respirador para manter o funcionamento do coração.

SEM MULETAS
Cassio de Oliveira, que tem esclerose múltipla, com a mulher, Andreia, em São Paulo. Antes do tratamento ele não conseguia andar até a padaria

Cérebro
Uma das grandes promessas das células-tronco é a possibilidade de criar novos neurônios para combater doenças como os males de Alzheimer e Parkinson, ou de evitar a morte de neurônios nos casos de acidente vascular cerebral (AVC). Os cientistas estão longe de conseguir algo concreto. Mas dão os primeiros passos. A segurança do tratamento com células-tronco adultas, quando implantadas no cérebro de pacientes que acabaram de sofrer um AVC, está sendo testada por pesquisadores de quatro instituições brasileiras.

Durante o AVC, ocorre uma hemorragia ou o bloqueio de uma artéria do cérebro. Aquela região fica sem irrigação sanguínea, e os neurônios morrem. No caso desse estudo, apenas pacientes que não tiveram hemorragia podem participar. Células-tronco da medula óssea do próprio paciente são injetadas na artéria femoral por um cateter que as leva até a artéria do cérebro.

A pesquisa, que incluirá 50 pacientes, deverá acabar até o fim do ano. Até agora, 30 já receberam o implante. “Alguns pacientes passaram pelo tratamento há dois anos e não tiveram nenhuma complicação. É sinal de que a técnica não oferece riscos”, afirma a neurocientista Rosália Mendez-Otero, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenadora do projeto. Entre os riscos estudados está a possibilidade de as células-tronco entupirem outros vasos ou de serem consideradas células estranhas, o que poderia causar um ataque epilético.

A equipe de Rosália observou – por meio de marcadores químicos nas células – que elas haviam passado dos vasos sanguíneos para a parte do cérebro que ficou sem oxigênio. “Acreditamos que as células de medula liberam substâncias que impedem a morte dos neurônios que estão ‘doentes’ por causa da falta de oxigênio”, diz Rosália. As células-tronco parecem liberar substâncias que impedem a ocorrência de reações químicas que levam os neurônios à morte. “Elas funcionam como uma fabriqueta biológica que produz remédio para os neurônios doentes”, afirma.

Pesquisadores do Rio Grande do Sul já encerraram a primeira fase desse mesmo projeto. Vinte pacientes participaram do estudo. Segundo o neurologista Jaderson da Costa, diretor do Instituto de Pesquisas Biomédicas da PUC-RS, seis dos pacientes se recuperaram totalmente em três meses – readquiriram movimentos e a fala, nos casos em que ela havia sido afetada.

Outros oito não recuperaram totalmente os movimentos, mas melhoraram a ponto de não depender de outras pessoas para realizar atividades do dia-a-dia. “Nesse tipo de AVC, 75% dos pacientes apresentam seqüelas graves ou morrem em três meses. No estudo, 70% se recuperaram no primeiro semestre. Se temos um resultado inverso ao que as estatísticas apontam, isso mostra que o procedimento deu certo”, afirma. Para comprovar a eficácia, ainda é preciso fazer um novo estudo, que deverá começar no segundo semestre. Cem pacientes serão acompanhados por várias instituições e haverá um grupo controle, para comparação, que não receberá o tratamento.

Ainda não há certeza do que ocorreu com as células-tronco no cérebro dos pacientes. Exames de ressonância magnética mostraram uma maior ativação das áreas do cérebro afetadas pelo AVC. Segundo o neurologista Maurício Friedrich, houve um aumento na rede de artérias que irrigam essas áreas. Possivelmente em razão do estímulo provocado pelas substâncias liberadas pelas células-tronco. E não pela transformação delas em células do cérebro.

Essas questões ainda estão em aberto, mas voluntários como o funcionário público Agilberto Domingos Carpeneto, de 50 anos, estão ajudando a respondê-las. Ele sofreu um AVC no fim de 2005 e foi submetido ao implante. Saiu do hospital sem movimentar nem sentir o lado esquerdo do corpo. Começou a fazer fisioterapia. Foram oito meses de sessões diárias de uma hora. Aos poucos, começou a recuperar a capacidade de realizar tarefas corriqueiras, como amarrar o cadarço dos sapatos.

Seis meses depois de sofrer o derrame e de as células-tronco terem sido injetadas, o gaúcho teve uma grande vitória: foi dirigindo para o trabalho. Nunca imaginou que aqueles 8 quilômetros pudessem ser tão saborosos. Hoje, quase dois anos depois do procedimento, Carpeneto ainda tem dificuldades para movimentar os dedos da mão esquerda. “A agilidade da mão esquerda para digitar no computador é bem menor que a da direita”, diz Carpeneto. Ele também nota uma pequena dificuldade para caminhar, arrasta um pouco a perna esquerda. Mas isso não o impede de caminhar 6 quilômetros, três vezes por semana. Algo impensável há seis meses. Se sua recuperação é extraordinária, Carpeneto não sabe. “Nunca tinha tido um derrame antes, graças a Deus. Como vou comparar?”, afirma. Se fosse preciso, diz que faria tudo novamente.

As limitações da técnica:
- Só podem participar pacientes que não sofreram AVC do tipo hemorrágico.
- O implante tem de ser feito até uma semana depois do AVC.

AUTONOMIA
Carpeneto no Rio Guaíba, em Porto Alegre. Ele recebeu células-tronco no cérebro depois de um AVC. Recuperado, voltou a dirigir

Fígado
A capacidade das células-tronco adultas de regenerar o fígado, órgão mais disputado nas filas de transplantes brasileiras, está sendo testada num estudo realizado pela Universidade Federal da Bahia e pelo Hospital São Rafael, em Salvador. Os pacientes sofrem de cirrose hepática, destruição das células do fígado causada pelo vírus da hepatite C ou pela ingestão excessiva e prolongada de álcool. As células de dez pacientes foram extraídas da medula e levadas por um cateter até o fígado. Segundo os pesquisadores, a inflamação do fígado – característica da cirrose – foi reduzida.

Outros 30 pacientes foram submetidos à técnica até fevereiro deste ano. O objetivo desta vez é analisar a eficácia do tratamento. Assim como no primeiro estudo, os resultados foram positivos e devem ser publicados no segundo semestre. Apesar da melhora, ninguém se livrou da fila de transplante de fígado. “O objetivo do procedimento era aumentar a sobrevida dos pacientes”, diz Ricardo Ribeiro dos Santos, um dos coordenadores do estudo. “No Brasil, menos de 10% dos pacientes costumam sobreviver a tempo de conseguir um órgão, numa espera de até quatro anos.”

No futuro, os pesquisadores acreditam ser possível tirar portadores de cirrose da fila de transplantes. “Não tenho dúvidas de que um dia as células-tronco vão evitar transplantes”, diz Santos. Mas ele não acredita que isso ocorrerá usando os métodos empregados até agora. Ele aposta em experiências com um tipo de célula-tronco adulta conhecida como mesenquimal, cuja capacidade de transformação em diferentes tecidos é superior à da célula-tronco usada atualmente, chamada hematopoética.

‘‘As células-tronco me deram uma segunda chance. Minha grande ambição é ser feliz’’
CASSIO DE OLIVEIRA, portador de esclerose múltipla

As limitações da técnica:
- Os pacientes não se livraram da fila de transplante de fígado.
- Não se sabe como pacientes em estágios iniciais de cirrose reagiriam à terapia.

E os embriões?
Santos aposta mais ainda nas pesquisas com células-tronco embrionárias, que têm o potencial de se transformar em qualquer tecido do organismo. Ele e todos os outros pesquisadores que lideram os principais estudos clínicos com células-tronco adultas no Brasil defenderam o uso de embriões na audiência pública sobre o assunto realizada no Supremo Tribunal Federal em abril.

Em 2005, a Lei de Biossegurança autorizou as pesquisas com embriões excedentes dos tratamentos de fertilização, desde que o casal consentisse na doação. Oponentes das pesquisas entraram com uma ação de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal. Eles argumentam que os estudos com embriões ferem o direito à vida. A Corte deve decidir em breve se as pesquisas devem ou não ser liberadas.

O ministro Carlos Ayres Britto, relator da matéria no STF, está elaborando seu voto. O documento deverá conter 30 páginas. “Pretendo terminar de escrever o texto nas férias de julho e entregá-lo na primeira semana de agosto”, diz. A decisão dos ministros vai definir a posição que o país terá nas próximas décadas numa das áreas mais promissoras da Ciência. Nas páginas seguintes, você verá o que está acontecendo nos países que permitem as pesquisas com embriões. E aonde o Brasil pode chegar.

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